A globalização do futebol saudita

A liga da Arábia está recebendo investimentos estatais pesados num ambicioso plano político e econômico.

O futebol na Arábia Saudita foi introduzido por trabalhadores estrangeiros na década de 1920. Entretanto, apesar da existência amadora de torneios futebolísticos no país, somente a partir da década de 1950 foi possível o início da organização desse esporte, por meio da criação da Federação Saudita de Futebol em 1956, que fundou a liga profissional 20 anos depois. Em 2008, o campeonato se tornou totalmente profissional, chamando-se Saudi Pro League (SPL), trazendo uma maior popularidade e novos patrocínios para a competição, mas nada comparado ao que aconteceu nos últimos anos. 

Logo da liga saudita

[Reprodução: Instagram/@spl]

“Antes dos investimentos, era uma liga bem básica, dominada, principalmente pelo Al-Hilal (maior campeão disparado da competição, com 18 títulos) e por outros três times que conseguiram contratar os melhores jogadores do país”, diz Fernando Ribeiro ao Arquibancada, narrador esportivo e apresentador do Canal GOAT BR, principal transmissor da SPL no Brasil.

Início dos investimentos

Em 2023, o PIF (Public Investiment Fund), fundo público de investimento saudita, o mais rico do país, passou a comandar 75% do capital dos quatro principais clubes: Al-Nassr, Al-Ittihad, Al-Hilal e Al-Ahly. Isso possibilitou que os clubes realizassem transferências com valores astronômicos por grandes nomes do futebol mundial.

Esse fenômeno está relacionado diretamente com o projeto “Visão 2030”, que tem o objetivo de diversificar a economia árabe, não deixar o país à mercê da volatilidade do petróleo, seu principal produto de exportação e responsável por grande parte da riqueza gerada no país. Além de atrair investidores e turistas e aumentar a atuação do setor privado.

Segundo o jornalista Irlan Simões em entrevista ao Arqui: “A ideia é usar o futebol para consolidar a imagem da Arábia Saudita como o centro do mundo árabe. Já é o país mais rico, o mais poderoso e o mais influente, mas eles querem mesmo ter essa imagem global”.

Além disso, todo esse investimento estatal no futebol é caracterizado como uma prática de sportswashing (lavagem esportiva, do inglês). Prática que visa melhorar a imagem da Arábia Saudita mundo a fora, devido às diversas polêmicas relacionadas à violação de direitos humanos no país, como práticas de tortura, execuções e intolerâncias religiosas e de gênero.

Um exemplo dessa prática realizada pelo governo saudita foi a compra de 80% do clube inglês Newcastle United. O time passava por uma situação turbulenta antes da sua compra e conseguiu se reerguer. Tornou-se um dos principais elencos da Inglaterra, o que os garantiu uma vaga na Liga dos Campeões da Europa em 2023.

O mesmo fenômeno ocorreu em clubes como o Manchester City em 2008, comprado pelo Sheik Mansour bin Zayed Al Nahyan através do Abu Dhabi United Group (Emirados Árabes Unidos) e o Paris Saint-Germain (PSG), comprado em 2011 por um fundo de investimento do Catar (Qatar Sports Investments).

Outros exemplos de sportswashing são quando países sediaram grandes eventos esportivos com esse mesmo intuito de “limpar sua imagem”, como foi o caso das Copas do Mundo de 2018 na Rússia e a de 2022 no Qatar.

Cristiano Ronaldo, o precursor

O craque português, também conhecido como CR7, iniciou sua carreira no Sporting de Portugal e teve passagens grandiosas por gigantes do futebol europeu, como: Manchester United, Real Madrid e Juventus, colecionando cinco bolas de ouro e inúmeros títulos. Com isso, CR7 é considerado o melhor jogador de sua geração junto com Lionel Messi.

Quando o atleta anunciou sua ida ao Al-Nassr no dia 30 de dezembro de 2022, o mundo do futebol foi pego de surpresa, já que um de seus maiores jogadores juntava-se a um clube árabe quando ainda podia estar jogando em um grande clube europeu.

A transferência de Ronaldo em conjunto com a ação do PIF de comandar 75% dos principais times do país indicavam que o eixo do futebol estava se deslocando ao Oriente Médio. Em uma fala aos repórteres, o atacante frisou: “Eu abri o caminho para a liga saudita e agora todos os jogadores vêm para cá”, ressaltando seu protagonismo na expansão da SPL.

Cristiano e dirigente de seu novo clube exibindo sua camiseta

Após segunda passagem conturbada pelo United, Ronaldo decidiu dar um novo passo na carreira [Reprodução: Instagram/@cristiano]

As principais transferências e a diferença em relação à expansão chinesa

Com as portas sendo abertas por Cristiano Ronaldo, uma grande onda de jogadores o seguiu, encorajados para fazerem parte de um novo projeto que foi iniciado por um dos maiores ícones do esporte e pela quantidade absurda de dinheiro oferecida pelos árabes.

Dessa forma, jogadores estrelados como: Karim Benzema (ganhador da bola de ouro em 2022), N’Golo Kanté, Fabinho, Moussa Diaby, Houssem Aouar e Steven Bergwijn se juntaram ao Al-Ittihad.

Sadio Mané (segundo na bola de ouro em 2022), Marcelo Brozovic e Jhon Durán foram ao Al-Nassr.

Sergej Milinković-Savić, Kalidou Koulibaly, Malcom, Aleksandar Mitrović, Rúben Neves, João Cancelo, Marcos Leonardo e o craque brasileiro Neymar (retornou ao Santos) assinaram com o Al-Hilal.

Édouard Mendy (melhor goleiro do mundo em 2021), Roberto Firmino, Riyad Mahrez, Ivan Toney e Galeno transferiram-se ao Al-Ahli, Jordan Henderson acertou como Al-Ettifaq e Ivan Rakitić foi para o Al-Shabab (saiu para o Hajduk Split).

Fotografia de Neymar em sua apresentação no AL-Hilal

Apresentação de Neymar no Al-Hilal, provavelmente foi a transferência mais impactante após a de CR7 [Reprodução:https://www.spl.com.sa/en/galleries]

Não só jogadores aderiram ao projeto como também diversos treinadores, alguns com grande reputação, por exemplo: Jorge Jesus (Al-Hilal) e Laurent Blanc (Al-Ittihad), e outros que deixaram o projeto após um período: Luís Castro (Al-Nassr), Steven Gerrard (Al-Ettifaq), Vítor Pereira (Al-Shabab), Odair Hellmann (Al-Riyadh).

Muitos associaram essa onda de contratações sauditas com o movimento que ocorreu na liga chinesa na década de 2010, que trouxeram jogadores como: Oscar,, Paulinho, Hulk, Carlos Tevez etc. Mas a expansão chinesa não teve o volume nem a qualidade dos jogadores que a SPL trouxe. Além de que foi comandada pelo dinheiro de empresas imobiliárias como a falida Evergrande (dona do antigo time Guangzhou Football Club), com uma participação governamental que cobrava por resultados e, no caso da Arábia Saudita, o próprio governo, através do PIF, comandou o movimento numa totalidade.

“É a grande singularidade da China, é privado e é estatal. É um plano de governo e ao mesmo tempo o desenvolvimento de um mercado, algo bem peculiar”, diz Irlan. O jornalista completa: “E, com um nível de exigência muito grande, tanto quando houve uma revisão dessa política do futebol, o processo de retirada de recursos foi imediato”.

Os impactos

A expansão do futebol árabe causou inúmeros impactos no planeta e no próprio país, de natureza esportiva, econômica, social e cultural.

No contexto esportivo, os sauditas passaram a oferecer uma maior competitividade tanto no mercado de transferências com seu dinheiro, que parece ilimitado, quanto nas competições internacionais que se seguiram, principalmente no Mundial de Clubes da FIFA.

Economicamente, a SPL gerou um aumento gigante em sua receita com novos contratos de transmissão e patrocínios de diversas empresas ao redor do mundo. A indústria do esporte e o turismo no país foram impulsionados com a criação de novos negócios, hotéis, infraestrutura e oportunidades de emprego à população.

Imagem do campo do Al-Hilal

Kindogm Arena, novo estádio do Al-Hilal, com capacidade para 27 mil espectadores, localizado na cidade de Riade, capital da Arábia Saudita [Reprodução: https://www.spl.com.sa/en/galleries]

Por fim, o massivo investimento no futebol também irá gerar um maior interesse da população local no esporte, ajudando a criar uma identidade nacional baseada no futebol, como existe no Brasil, por exemplo.

Situação atual e as polêmicas

Saudi League encontra-se em um momento de ascensão, em relação aos investimentos e o capital gerado, mas o retorno esportivo ainda não chegou. De modo que nenhum time saudita conseguiu chegar à final da Liga dos Campeões da Ásia desde 2022.

Além disso, surgiram diversas polêmicas e reclamações de diferentes jogadores em questões como: salários atrasados, choque cultural (causado pelos diferentes costumes e leis do Oriente Médio), baixo nível de qualidade do futebol em geral e a infraestrutura esportiva ruim de alguns clubes.

Como exemplos, há o caso do meia inglês Jordan Henderson, ex-Liverpool. O atleta é conhecido como um grande defensor da causa LGBTQIA+ e foi duramente criticado por jogar em um país onde é crime ser homossexual. Naturalmente, o jogador rebateu as críticas e disse que era algo positivo ir jogar na Arábia Saudita e acreditava no projeto esportivo do Al-Ettifaq. Seis meses após sua transferência, Henderson desistiu do projeto, rescindiu seu contrato e voltou para a Europa para atuar no Ajax da Holanda.

Imagem de Jordan Henderson em seu anuncio no Al-Ettifaq

Jordan Henderson virou ídolo em Anfield, mas decidiu se juntar ao projeto saudita [Reprodução: Instagram/@jordanhenderson]

O zagueiro espanhol Aymeric Laporte, do Al-Nassr, teceu duras críticas ao futebol saudita em uma entrevista ao jornal espanhol “As”, em que disse que vários atletas estão descontentes. Entre os principais problemas, o jogador apontou a falta de seriedade e um estilo de vida menos profissional entre os jogadores, comparado ao nível europeu.

O atacante brasileiro Roberto Firmino e o ítalo-brasileiro Luiz Felipe também foram mencionados pela imprensa como descontentes com o estilo de vida no Oriente Médio e com o choque cultural causado, principalmente, a questão de gênero, relacionada às suas esposas. Isso porque a Arábia Saudita possui diversas proibições e restrições para as mulheres em seu país.

Em outro caso, alguns clubes, como o campeão da temporada 2022/23 da SPL, Al-Ittihad, deixaram de pagar os salários de alguns funcionários por meses, mesmo realizando a contratação de Benzema, Kanté e outros jogadores por valores exorbitantes.

“É uma cultura diferente, as relações interpessoais também são. Muitos jogadores não pensaram nisso, devido aos salários, e não se adaptaram. A rédea é curta, quem conseguiu se adaptar se deu bem, como o Cristiano. Benzema, por exemplo, teve problemas porque chegou lá achando que ia mandar no time”, ressalta Fernando.

Futuro do “sauditão”, o que esperar?

Após uma primeira temporada não tão bem-sucedida dos clubes sauditas, considerando as competições continentais (Liga dos Campeões da Ásia) e mundiais (Mundial de clubes da FIFA), o país deve continuar realizando injeções de capital do PIF nas suas equipes, porém visando mais um desenvolvimento a longo prazo.

O plano de Mohamed Bin Salman (MBS), príncipe-herdeiro da monarquia árabe, comandante do país e o responsável pela elaboração do plano “Visão 2030”, é manter as grandes estrelas de seu futebol, como CR7, Benzema e Kanté, já que alguns, como Neymar, abandonaram o projeto, e buscar novos jogadores. Além disso, trazer novos investidores e patrocinadores para fortalecer a estrutura do futebol nacional ainda mais. O governante também pretende aumentar o nível das outras equipes do campeonato, visto que é evidente a disparidade nos elencos das quatro equipes principais em relação ao resto da liga.

Cristiano cumprimentando sheik árabe

O príncipe Mohamed Bin-Salman é a figura central na tentativa de transformar a Arábia Saudita numa potência esportiva mundial [Reprodução: Instagram/@cristiano]

Contudo, as limitações causadas pelo Fair-Play financeiro da FIFA, que tenta limitar os gastos dos clubes com base nas suas receitas, pretendem “frear” essa investida saudita. “Existem limitações, eles (sauditas) estão lendo bem esses processos e vendo que não é tão simples assim”, de acordo com Irlan, em relação aos planos de transferência de jogadores.

Desse modo, os sauditas também perceberam que o investimento feito apenas em grandes jogadores não era o suficiente para aumentar a qualidade e a competitividade do campeonato. É necessário investir na estrutura dos times, na formação de categorias de base e jogadores jovens e na criação e melhora das outras divisões do futebol árabe.

“Se o plano é transformar a Arábia Saudita numa força no mundo futebolístico, estão no caminho certo. É possível ver os estádios sempre lotados nos jogos, o interesse da população é grande e está crescendo. Eles estão investindo muito forte, têm organização e seriedade no projeto”, afirma Fernando.

Imagem da torcida do Al-Ittihad

Uma das maiores rivalidades do país é o Clássico Saudita, entre Al-Ittihad e Al-Hilal, clubes vistos como representantes das cidades rivais de Gidá e Riade [Reprodução: https://www.spl.com.sa/en/galleries]

Em relação ao “Visão 2030”, o ambicioso projeto também pretende aumentar o número de visitantes no país por ano, graças ao investimento esportivo, para 150 milhões até 2030 (em 2021 foram 64 milhões). E espera que a receita da SPL quadruplique para US$480 milhões, mas o valor exato pode estar sujeito a mudanças.

Além disso, a FIFA confirmou que a Copa do Mundo de 2034 será disputada na Arábia Saudita e o MBS tem o plano de construção de uma megacidade no deserto, próximo ao Mar Vermelho, chamada Cidade Neon. Esse projeto está orçado no valor de 5 trilhões de reais e a cidade será usada para os jogos do Mundial de 2034.

Autor:  Andrey Furmankiewicz.

Fonte: Jornalismo Júnior/USP.