Proximidade da turnê de Bad Bunny abre discussão sobre papel da música latina no cenário global
A musicalidade latino-americana abrange canções criadas dentro dessa região, em idiomas originados principalmente do latim, como português, espanhol e francês — vestígios da colonização europeia. Por conta da extensão geográfica e da diversidade de povos, características regionais refletem nas músicas latinas diferentes ritmos, histórias e pensamentos, que compõem um mosaico étnico-cultural variado. Esses estilos passaram a servir de referência para artistas não-latinos, a exemplo da Rosalía, artista espanhola que concorreu ao Grammy Latino em 2022, o que resulta em debates acerca da apropriação ou não dessas culturas na música.

[Imagem: UNESCO/Wikimedia Commons]
As músicas latinas
O uso de instrumentos variáveis, como o cavaquinho e o tres cubano, e a mistura de culturas no território latino ocorrem desde o século 15, marcado pela chegada do espanhol Cristóvão Colombo às terras americanas, no contexto das Grandes Navegações europeias. A colonização, que depois passou a ser feita por outras civilizações, impôs aos povos nativos os costumes vindos da Europa, além de perseguir e sufocar as culturas originárias. Além disso, a transferência de comunidades africanas escravizadas para o território latino-americano, junto com a imposição europeia e a resistência sociocultural dos nativos, produziu hábitos e conhecimentos locais diversificados e, consequentemente, novos ritmos musicais. É importante ressaltar que a língua principal utilizada nas canções é um dos principais legados do colonizador.
A cumbia colombiana é um exemplo. O estilo musical alegre e dançante que se espalhou por outras partes da América, como o México, utiliza instrumentos de suas raízes para produzir canções típicas dos bailes de salão inspirados na Europa. A introdução de instrumentos de corda faz parte do sistema instituído pelo colonizador. Já os tambores, como o llamador, são herança dos povos africanos que fornecem à cumbia batidas envolventes e eletrizantes, junto da gaita, um tipo de flauta indígena.
Outro ritmo latino é o chá-chá-chá. O estilo surgiu em Cuba, em meados de 1950, como uma variação do mambo e da rumba, e pode se referir tanto ao ramo musical quanto ao tipo de dança. Também associado aos salões de dança, o chá-chá-chá possui ritmos animados e conta com uma variedade de passos marcados. A origem do nome é um enigma, mas um grupo de estudiosos defendem que está associado aos sons que os passos dos bailarinos fazem durante as apresentações. Por outro lado, existem argumentos que alegam que a nomenclatura deriva do som do reco-reco (güiro), um instrumento introduzido na antiga colônia espanhola durante a escravidão.
No Brasil, é comum ver falas sobre musicalidade latina que não consideram as músicas brasileiras como latinas, principalmente quando se associa a América Latina somente ao espanhol. Estilos como a bossa-nova, o funk carioca e o samba são composições latino-americanas de grande relevância.
Os trânsitos musicais
A América Latina, além de importar ritmos, também possui um destaque em influenciar os estilos estrangeiros. Segundo a professora de música Bia Cyrino, coordenadora do Curso Superior de Música da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA), a partir da década de 1990, a música latino-americana passou por um processo de mundialização. Nesse período, tornou-se comum ouvir ritmos latinos ao redor do mundo, em destaque na Europa e nos EUA.
Estilos como o reggaeton passaram a ser consumidos pela comunidade internacional. Com origem incerta e destaque inicial em Porto Rico, o estilo é marcado pela mistura de reggae, hip-hop e musicalidades latinas, com um fundo eletrônico. Esse tipo de música surgiu nas periferias latinas e trata sobre o cotidiano e as ideias das comunidades marginalizadas.
O reggaeton é um exemplo de trânsito musical que, de acordo com Bia Cyrino, sempre existiu. Para além de um imperialismo norte-americano e europeu, a dispersão de gêneros musicais no mundo indica uma modernização dos estilos. Porém, é importante descartar que a imposição de ritmos pelo Norte Global ocorre desde a colonização do Novo Mundo.
Um exemplo mais próximo da atualidade é a importação do jazz norte-americano dos Estados Unidos para América Latina, ocorrido na década de 1940. A introdução de canções do tipo Tin Pan Alley no cenário musical brasileiro abre duas interpretações: “Uma questão de imperialismo, no sentido em que o Brasil estava se relacionando de diversas formas com os Estados Unidos” e o “sentido de modernizar a música brasileira [bossa-nova]”, conforme a professora Bia Cyrino.
No primeiro caso, a Política da Boa Vizinhança — proposta pelos EUA em relação aos países latinos — marca o neocolonialismo que, a exemplo de ocorrências no Brasil, financiou a Companhia Siderúrgica Nacional em troca da instalação de bases militares na 2ª Guerra Mundial. A dependência de capital estrangeiro pelo governo brasileiro da época — o Estado Novo de Getúlio Vargas (1937-1945) — para desenvolver a indústria nacional impôs maiores importações culturais estadunidenses, observadas na bossa nova. Porém, a introdução do jazz possibilitou a modernização da Música Popular Brasileira (MPB), que adicionou instrumentos para as composições nacionais.
A professora, que é especialista em MPB, tem seus estudos voltados para a década de 1960 e 1970 e afirma que a entrada de referências internacionais era debatida pelos artistas. Enquanto músicos ligados ao Tropicalismo eram a favor da importação de padrões estrangeiros para a reinvenção dos gêneros musicais brasileiros, como os riffs de guitarra semelhantes aos do rock, outros artistas recusaram essa entrada — semelhante ao que aconteceu no Movimento Antropofágico de Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral na primeira geração Modernista brasileira.

[Imagem: Divulgação/Universal Music]
Bia Cyrino ressalta os diálogos existentes entre as gravações de Elis Regina como o jazz e o samba-jazz, mesmo que a artista criticasse a internalização de ritmos e instrumentos do rock’n roll. Situações como a de Elis evidenciam que “sempre existe uma escolha específica do artista, não é tudo que é internacional que é ruim”, para a docente.
Indústria musical na América Latina
Os hits musicais de origem latina que viralizam ao redor do mundo tendem a ser do mesmo ritmo, o reggaeton. Esse estilo ganhou espaço no mercado musical internacional ao agradar os ouvintes por sua mistura de instrumentos com a batida eletrônica e tem suas músicas requisitadas pela indústria musical. Cantores como o porto riquenho Bad Bunny e a colombiana Karol G são os destaques atuais nesse ramo.
Vencedor de várias categorias do Grammy Awards, Bunny teve sua ascensão no mercado internacional a partir de 2017, com colaborações com J Balvin e Drake. Em suas músicas, trata sobre desigualdade social, amor, família e violência, com críticas e denúncias ao cotidiano das camadas marginalizadas de Porto Rico. O cantor mistura elementos do trap latino com o reggaeton para criar uma imagem de seu país natal.
Neste ano, o cantor anunciou sua nova turnê DeBÍ TIRAR MáS FOToS que passará pela Europa, Japão, Austrália e América Latina, em que se apresentará pela primeira vez no Brasil. Os EUA ficaram de fora do roteiro, visto que o artista declarou ser “desnecessário” fazer shows no país, uma vez que os estadunidenses já tiveram oportunidades de vê-lo em apresentações. Na internet, surgiram suspeitas de que o real motivo de Bunny não passar pelos EUA seria a preservação de fãs que moram no país — a maioria latina — de conflitos com a política anti-imigratória de Donald Trump. O artista confirmou as teorias em setembro e demonstrou ter ciência do risco que latinos seriam expostos em seus shows no país.
Já a cantora e compositora Karol G tem seu nome em alta desde a década de 2010 e também tem como estilos musicais mais usados o trap e reggaeton. O empoderamento feminino é um dos temas mais abordados em suas músicas. A artista apresenta-se com looks futuristas e urbanos que condizem com uma mistura de culturas tanto latinas, quanto não-latinas. Vencedora do Grammy na categoria “Melhor Álbum de Música Urbana” em 2022 e em 2024, a artista tem sido referência musical.
No cenário brasileiro, a cantora Urias tem feito sucesso misturando ritmos, como o reggaeton, o funk paulista, o hip-hop e o pop. Além de juntar ritmos, Urias canta em diversos idiomas em suas composições, desde as línguas românicas (originadas do latim) ao o inglês. A artista aborda temas do cotidiano e até a exaltação da luxúria, mas também trata de temas mais sérios, como a violência contra pessoas trans.

Apropriação ou hibridismo?
Com a popularização dos ritmos musicais latinos, vários cantores do Norte Global passaram a buscar inspirações nessas musicalidades. A artista espanhola Rosalía foi vencedora de quatro prêmios no Grammy Latino em 2022, com seu terceiro álbum Motomami (2022). Nesse lançamento, a cantora utilizou na maioria das canções o ritmo do reggaeton, que pode ter garantido popularidade para a artista e suas canções.
Desde que a cantora foi indicada às categorias, surgiram questionamentos acerca de sua origem, que não condiz com um prêmio que destaca nomes da cena latino-americana. A situação foi preenchida por debates nas mídias sociais, em destaque o X (antigo Twitter), nas quais usuários a acusavam de apropriação cultural, enquanto outros defendiam que ela cantava músicas latinas então poderia concorrer ao prêmio.
As acusações de apropriação cultural foram um dos principais assuntos no período entre a indicação e a premiação, já que, dentro dos parâmetros do Grammy Latino, Rosalía era apta a participar. Segundo o professor Lourenzo Guidoni Maragni, autor da dissertação “Hibridismo cultural: um olhar sobre as canções latinas” (2009), “apropriação é quando você usa um elemento cultural de determinado lugar e exclui esse local”. Nessa perspectiva, quando Rosalía enaltece o cenário latino não estaria praticando uma apropriação, mas, sim, realizaria um hibridismo cultural, uma fusão entre as culturas.
De acordo com o docente do Centro de Comunicação e Letras da Universidade Presbiteriana Mackenzie, a América Latina passou a influenciar mais a cultura europeia, em especial Portugal e Espanha, do que sofrer interferência dela. O pesquisador afirma que, enquanto esteve na Espanha nos últimos três anos, era comum escutar músicas da hispano-américa. Em suas passagens por Portugal, canções brasileiras eram comumente escutadas pelos portugueses.
“Ela [música hispano-americana] é interferida pela estadunidense muito mais do que, por exemplo, a europeia.”
Professor Lourenzo Guidoni, em entrevista ao Sala 33
Por outro lado, a influência estadunidense é mais presente na música latina. A soberania de gêneros como o pop e o rock são fatores que afetam o comportamento e a interação entre os ritmos musicais. A presença de expressões em inglês nas músicas latinas, com auge a partir do final da década de 1990 e começo dos anos 2000, foi um movimento mercadológico de gravadoras de artistas como Rick Martin e Shakira, que ascenderam nesse momento, para atraírem mais audiência internacional, em destaque ao mercado norte-americano.
Lourenzo Guidoni ressalta que, devido à proximidade entre os Estados Unidos e Porto Rico — território não incorporado da potência —, músicas do reggaeton já incluíam falas em inglês, o chamado Spanglish (variedade linguística resultante da mistura entre o inglês e o espanhol). A mistura de canções com os idiomas é um espelho da tentativa de inclusão positiva da América Latina do mercado musical internacional, além da hibridização das culturas e de uma tentativa de ganhar espaço no mercado.
“Língua é poder, não só status. Ela é um reflexo econômico.”
Professor Lourenzo Guidoni
Um episódio brasileiro de inclusão no mercado internacional através da língua é o da Anitta. Segundo o docente, a Anitta começou a aparecer mais no cenário mundial quando começou a cantar reggaeton. O gênero já tinha uma importância do ramo mundial, então utilizar dele para atingir uma fama fora do Brasil foi uma estratégia de mercado. Além disso, em seu álbum Funk Generation (2024), Anitta mistura os ritmos latinos, principalmente, o funk carioca com o inglês, o que marca uma a artista como uma cantora de grande destaque no cenário internacional.
Autor: Fernando Silvestre.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.
