Conheça a vida intensa, mas breve, de uma das mulheres mais influentes da história argentina.
Eva María Duarte nasceu em 7 de maio de 1919, na cidade de Los Toldos, província de Buenos Aires, na Argentina. Filha de uma relação extraconjugal entre Juana Ibarguren, uma costureira, e Juan Duarte, um rico fazendeiro, Eva sofria com o estigma de “filha bastarda”. Ela e seus quatro irmãos viveram em condições precárias durante a infância, pois seu pai, um ano após o nascimento de Eva, os abandonou para viver com a mulher com quem era casado legalmente.
Após a morte de Juan, em um acidente de carro, em 1926, Eva adotou o sobrenome “Duarte”, mas não teve acesso a nenhuma das posses do pai, visto que ela e seus irmãos eram vistos como parentes ilegítimos pela legislação argentina. Desde pequena, Evita – como ficou conhecida posteriormente – demonstrava paixão pelo teatro e pelo desejo de ser atriz. Aos oito anos, ingressou na única escola da cidade, na qual se destacou pela habilidade de declamar e de falar em público.
Em 1935, Evita mudou-se para Buenos Aires, motivada pelo sonho da carreira artística. Na cidade, ingressou como atriz na Companhia Eva Franco e, em 1937, fez sua estreia no cinema com o filme Segundos afuera. Entre 1936 e 1942, desempenhou vários papéis no cinema, no teatro e na rádio, mas ganhou verdadeira notoriedade como locutora de radionovelas.
A carreira política de Evita
Em 1944, um terremoto atingiu a capital da província de San Juan e deixou mais de 8 mil mortos. A Secretaria de Trabalho e Previdência, comandada pelo general Juan Domingo Perón, promoveu eventos para arrecadar fundos destinados às vítimas da tragédia e à reconstrução da região afetada. Em um desses eventos, que contou com a presença de atores e atrizes, Evita conheceu Perón – então vice-presidente da nação, ministro da Guerra e secretário de Trabalho e Previdência. A partir dali, iniciaram um relacionamento amoroso.
Os opositores de Perón, que já o viam como populista e temiam sua ascensão ao poder, se irritaram ainda mais após o anúncio de seu relacionamento com Evita, uma atriz de segunda linha, filha “bastarda” de uma família do interior, e pobre. Em 13 de outubro de 1945, uma crise política eclodiu na Argentina, e Perón foi preso e levado à Ilha Martín García.
Evita, perante tal situação, mobilizou sindicalistas e conduziu um grande protesto dos trabalhadores para exigir a libertação do coronel. O ato foi bem sucedido: Perón saiu da prisão e o governo convocou novas eleições. Apenas cinco dias depois da libertação, Evita e ele se casaram em Junín, e, a partir desse momento, ela assumiu de vez o sobrenome e a causa política de Perón.

Em fevereiro de 1946, Perón foi eleito presidente com 52% dos votos. Evita teve papel fundamental em sua campanha: utilizou o seu espaço no rádio para apoiar seu marido. Mas, segundo o professor Adrián Pablo Fanjul, linguista argentino e diretor da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP, não foi somente a contribuição de Evita que impulsionou a popularidade de Perón.
“A popularidade de Perón foi forjada a partir das medidas que Perón toma como Secretário de Trabalho e Previdência, como o estabelecimento da jornada de trabalho de 8 horas, o 13º salário e as férias trabalhistas”, explica Adrián. De acordo com o professor, Evita complementou essas ações ao atuar em áreas específicas da gestão, como no diálogo com as mulheres e com a população mais pobre.
A dama da esperança
A atriz atuou intensamente pela aprovação de uma lei que estabelecesse o sufrágio universal, visto que, até então, somente os homens podiam votar na Argentina. Em 1946, Evita apresentou a lei ao Congresso e, no ano seguinte, ela foi aprovada. A primeira-dama também teve papel importante na conquista da igualdade de direitos civis entre homens e mulheres, que foi incorporada à Constituição promovida por Perón em 1949.
Em 1948, graças à contribuição inicial de 10 mil pesos de Evita, foi criada a Fundação Eva Perón, uma instituição de assistência social que atuava junto ao Estado. A fundação foi responsável por construir escolas e hospitais, conceder lares para idosos e órfãos e estimular o esporte entre os jovens por meio de campeonatos. Também contribuiu para a criação da Escola de Enfermagem e a distribuição de alimentos, roupas, remédios, livros e brinquedos.
A atuação da fundação também se dava de forma direta. Evita atendia pessoalmente aqueles que se encontravam em casos especiais de carência e muitas vezes concedia uma bicicleta, uma máquina de costura, um leito de hospital ou uma vaga de emprego, a depender da necessidade de quem lhe pedia ajuda. Tais ações beneficentes fizeram com que ela ficasse conhecida como “a dama da esperança”.
Evita também fundou e presidiu o Partido Peronista Feminino, que tinha como foco a atuação nas áreas da saúde e da educação. Nas eleições de 1951, o grupo político conseguiu eleger 23 deputadas e seis senadoras.
As ações da jovem primeira-dama fizeram com que ela conquistasse o apoio de boa parte da população argentina, principalmente daqueles que pertenciam às classes populares. A importância simbólica de Evita para o peronismo foi tanta que, pouco antes de sua morte, o Congresso Argentino a nomeou Chefe Espiritual da Nação.

As oposições à figura de Evita Perón
De acordo com Fernando Sarti Ferreira, doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP), Evita é uma figura que dividia – e ainda divide – a sociedade argentina. “Para as elites argentinas e para os grupos antiperonistas, ela era de certa forma, traidora. Ela virou uma estrela de cinema e do rádio, frequentava festas da alta burguesia argentina, se vestia muito bem para a época, ou seja, foi ‘aceita’ dentro da elite argentina, mas se voltou contra esse grupo social ao se alinhar ao peronismo e à sua reivindicação dos direitos dos trabalhadores”, explica Sarti.
“Se ela é uma santa de um lado, ela é um demônio do outro.”
Fernando Sarti Ferreira
Alguns grupos faziam ataques ofensivos à Evita. Referiam-se a ela como “La yegua” (“A égua”, em português) ou como “Esa mujer” (“Essa mulher”, em português), na tentativa de depreciá-la. Segundo Sarti, quando foi anunciado que Evita estava doente, em 1952, antiperonistas picharam paredes em Buenos Aires com a frase “viva o câncer”.
Há quem visse também Evita e Perón como populistas. Adrián explica que o governo Perón associava estrategicamente a figura da primeira-dama às ações de caridade: “quem aparecia nas inaugurações das moradias populares era Evita. Então, isso reforçava a ideia de que ‘Evita nos deu isto’. Ela também participava da entrega de presentes”. O professor revela ainda que o casal tentava ser onipresente no cotidiano dos argentinos. Como exemplo, cita o fato de que os campeonatos promovidos pelo governo para estimular o esporte entre os jovens eram chamados “Campeonato Evita” ou “Campeonato Perón”.
“Ela sabia falar para a classe trabalhadora e isso produzia horror nas classes médias e altas”
Adrián Pablo Fanjul
Adrián pontua que, junto a esses fatores, estava o machismo, visto que seus opositores a acusavam de indecência e não suportavam a ideia de uma mulher de origens populares alcançasse tanta visibilidade.
A morte de uma liderança
No início da década de 1950, a saúde de Evita começou a se deteriorar. Ela passou a sofrer desmaios frequentes, sofrer sangramentos vaginais e sentir fortes dores no ventre. Hoje, sabe-se que ela foi vítima de câncer de colo do útero – a mesma doença que matou a primeira esposa de Perón, Aurélia, em 1938. A suspeita é que o general tenha transmitido para ambas o vírus do HPV, que é um fator que eleva as chances de desenvolver esse tipo de tumor.Em 26 de julho de 1952, Evita faleceu, aos 33 anos, no Palácio Unzué. Seu velório durou mais de 13 dias e se estima que dois milhões de pessoas tenham comparecido para se despedir de Evita Perón.

Segundo Daniel Nijensohn, neurocirurgião da Faculdade de Medicina da Universidade de Yale, Evita teria sofrido uma lobotomia antes de falecer, o que pode ter acelerado a piora do seu quadro de saúde. O médico chegou a tal conclusão após analisar imagens de raio-X do crânio da jovem e perceber sinais de perfuração.
O procedimento envolve o corte de conexões neurais entre os lobos pré-frontais e o restante do cérebro, com objetivo de amenizar as respostas emocionais. Nijensohn, em seu artigo para a Neurosurgical Focus, aponta que a operação pode ter sido realizada para controlar a dor causada pelo câncer. Apesar de não a erradicar totalmente, a diminuição da resposta emocional pode ter ajudado Evita a suportar o sofrimento.
Outra possibilidade é que a lobotomia tenha sido uma abordagem extrema de Perón para “acalmar” o comportamento incendiário de Evita, que se agravava conforme a doença e a dor avançavam. De acordo com o médico, seus últimos discursos expressaram reações incendiárias aos seus inimigos. Evita também ditou um documento chamado Minha Mensagem, em que exalta o “fogo sagrado do fanatismo” e critica os “imbecis” que pedem por prudência. Em forma de concretização das ameaças, teria encomendado 5 mil pistolas automáticas e 1,5 mil metralhadoras para armar os trabalhadores.
A primeira desaparecida da Argentina
Perón desejava que Evita fosse embalsamada e que seu corpo permanecesse no “Monumento ao Desacamisado”, um mausoléu que seria construído especialmente para ela. Após o funeral, o corpo foi enviado para a Confederação Geral dos Trabalhadores (CGT), onde Pedro Ara, um anatomista espanhol, iniciou o processo de conservação do corpo e de planejamento da estrutura do mausoléu.

Porém, em 1955, um golpe militar – autointitulado Revolução Libertadora – derruba Perón do poder. O coronel fugiu para o exílio e o cadáver de Evita permaneceu na CGT, sob os cuidados de Ara. Como explica o professor Sarti, um dos grandes objetivos desse novo governo era “desperonizar” a Argentina, e, por isso, ataca os seus símbolos. E dentre eles estava o corpo de Evita. Com medo de que seu cadáver se tornasse um ponto de peregrinação dos peronistas, os militares sequestram o corpo e o ocultam da sociedade.
Pedro Aramburu, então presidente do país, ordena que o general Carlos Moori, chefe do Serviço de Inteligência do Exército (SIE), dê um enterro cristão à jovem. Mas Moori não obedeceu ao Aramburu e deixou o corpo de Evita sob cuidados de seu vice, o major Eduardo Arandía, que escondeu o corpo no sótão de sua casa. Uma noite, o major ouviu barulhos em sua casa e desconfiou que algum peronista estava tentando resgatar o corpo. Disparou com sua pistola contra um vulto que se mexia na escuridão do sótão, sem perceber que atirava em sua esposa grávida, a qual não resistiu ao ferimento e morreu.
Depois dessa ocasião, Moori escondeu o cadáver em uma sala ao lado de seu escritório. O general mostrou o corpo para a jovem María Luisa Bemberg, que horrorizada, revelou o segredo a um amigo de importante cargo militar. Então, Aramburu descobriu a desobediência de Moori e o substituiu pelo tenente-coronel Héctor Cabanillas, que enviou o corpo para a Itália. Com apoio do Vaticano, o corpo de Evita permaneceu 14 anos enterrado em Milão, no cemitério Maggiore, sob uma lápide falsa. Com o intuito de não levantar suspeitas, uma freira chamada Giuseppina foi paga para levar flores ao túmulo com frequência.
Adrián Fanjul explica que o cadáver de Evita só retornou à Argentina quando, em 1974, os Montoneros, um grupo peronista de esquerda e guerrilheiro, sequestraram o corpo de Aramburu, e impuseram uma condição para a devolução do cadáver: a volta do corpo de Evita ao país. “Lembro que havia pichações: ‘Evita por Aramburu’”, comenta o professor.
A estratégia foi bem sucedida, e, desde 1976, Evita Perón está enterrada no cemitério da Recoleta, em Buenos Aires. Devido ao sequestro do corpo de Evita e ao seu desaparecimento por tantos anos, o escritor argentino Martín Caparrós a descreveu, em um de seus textos, como a primeira desaparecida da Argentina – em alusão à ditadura que se instaurou no país entre 1976 e 1983. O regime foi responsável pela morte de milhares de argentinos, muitos cujos corpos nunca foram encontrados.
As diferentes versões de Evita
Conforme explica Adrián, o fato de Evita ter morrido muito jovem permitiu que, ao longo da história, diferentes figuras fossem criadas acerca dela no imaginário das pessoas. Dentre elas, estão as imagens de Evita como feminista e comunista.
O professor exemplifica com o caso dos Montoneros. Após a morte de Evita, o grupo comunista se apropriou de sua figura e a transformou na personagem “Evita Montonera”. “Uma das palavras de ordem que cantavam nas manifestações era: “Si Evita viviera sería montonera” (“Se Evita estivesse viva, seria uma montonera”, em português). Alguns respondiam: ‘Si Evita viviera sería lo que era’ (Se Evita estivesse viva, seria o que foi”), afirma Adrián. Mas segundo ele, Evita não era socialista, e, inclusive, foi uma peça fundamental para o controle dos sindicatos e para a perseguição dos comunistas pelo governo Perón.
No caso do feminismo, o professor cita como exemplo o movimento das mulheres argentinas a favor da legalização do aborto, que ganhou força de 2018 a 2020. Evita Perón foi utilizada pelo movimento como uma espécie de exemplo de força feminina a ser resgatado, e em várias ilustrações ela foi desenhada usando um lenço verde, que era o símbolo do movimento. Na visão dele, Evita não era feminista e alguns trechos de seu livro podem ser interpretados como um freio ao movimento feminista. “Basta ler o livro dela, La razón de da mi vida para ver. Ela fala muito mal do feminismo”, afirma o professor.
Já Fernando Sarti apresenta uma versão diferente sobre isso. Para ele, Evita foi importante para o movimento feminista dos anos 1950, mas não pode ser apropriada pela luta atual do movimento feminista e por suas reivindicações. “Evita Perón era a favor da família tradicional. Inclusive, Perón e ela justificavam os direitos trabalhistas com base na perspectiva de que o trabalhador deveria ser o provedor de casa e a mulher teria que fazer serviço doméstico”, exemplifica o professor.
Autora: Lívia Bortoletto.
Fonte: Jornalismo Júnior/USP.
